Excerto da entrevista concedida à
Cristine Gerk e à Marsílea Gombata para ao Caderno de Ideias do Jornal
do Brasil de 20/12/2008.
O que falta para a humanidade
conseguir orquestrar filosofia, ética e ecologia? Para qual direção estamos
caminhando?
R/ Para responder a esta questão
devemos ir à raiz do problema. Esta reside no fato de que a humanidade perdeu o
sentido de totalidade, o sentimento de que nós seres humanos pertencemos a um
todo maior, primeiro à natureza depois à Terra, por fim ao cosmos.
Esta era a visão dominante na história da humanidade e ainda presente nos povos
originários, como os indígenas. Estes se sentem filhos e filhas do sol e da
lua, parte da natureza, em profunda comunhão com as energias das águas, das
montanhas, do fogo e de outros elementos naturais. Nós vivemos num mundo todo
compartimentado, fruto da leitura científica moderna, nascida com Descartes, Galileo
Galilei, Francis Bacon, Newton entre outros. Estes separaram o que está sempre
unido e matematizaram todas as relações com a natureza no afã de melhor
dominá-la. Perdemos aquilo que as religiões sempre nos deram: o
sentido da religação de tudo com tudo e com a Fonte de todos os seres. O oposto
à religião hoje não é o ateísmo ou a areligião, mas a falta de conexão com a
realidade e a perda da capacidade de identificar o fio condutor que une e
re-une todos os seres para formarem um cosmos e não um caos. Eis o
efeito da razão instrumental-analítica que operou em nós uma espécie de
lobotomia. Nós não sentimos mais as coisas, não captamos a mensagem que nos vem
da luz, da noite, do céu estrelado, do olhar inocente da criança, da mão
estendida do faminto, do olhar suplicante do ancião abandonado na rua. Para
resgatar o sentido de totalidade precisamos enriquecer a razão calculatória com
a razão sensível e com a razão cordial. É este tipo de razão que constitui a
dimensão mais profunda de nossa realidade humana e que nos faz sensíveis a
valores e nos devolve a percepção do sagrado do mundo e do respeito a cada ser,
especialmente ao ser humano. Ela nos faz descobrir que o coração da pedra, da
árvore,do animal e do ser humano é um só grande coração sintonizado com o
coração de Deus ou do Tão, ou de Shiva ou de Olorum. Para onde vamos? A
perseguir o caminho da ditadura da razão analítica que se perde no
estabelecimento dos meios sem definir os fins que são a salvaguarda da vida, o
convívio pacífico entre os povos e a harmonia com a natureza, a perseguir esse
caminho, repito, vamos ao encontro de uma catástrofe sem precedentes. O excesso
de razão produz a irracionalidade e a irracionalidade pode provocar o colapso
da espécie e do projeto planetário humano.
Como você distinguiria os tipos de ecologia: ambiental, social, mental e
integral?
R/ Na verdade a ecologia é uma só.
Trata-se menos de uma técnica de gestão de recursos escassos do que de uma ars
nova, de um novo paradigma de relação para com a natureza, para com a vida
em sociedade e para com a busca de um novo acordo do ser humano com seu futuro
possível. Um paradigma recobre todas as relações que o ser humano
estabelece; por isso pode-se fazer distinções dentro de um mesmo
horizonte comum. Com referencia ao ambiente, urge passar de uma
concepção reducionista do meio-ambiente para a compreensão do ambiente inteiro
do qual o ser humano é parte. Com referência à sociedade, consideram-se as
diferentes formas de produção que devastam os recursos naturais ou são mais
atentas aos ciclos da natureza e sua capacidade de regeneração. Com referência
à mente precisamos estar atentos às visões de mundo, como o antropocentrismo,
aos preconceitos e aos hábitos que nos levam a agredir a natureza ou
a tratá-la com benevolência e sinergia. Com referência à visão integral da
realidade, precisamos incorporar os conhecimentos das assim chamadas ciências
da Terra, a astrofísica, as teias de energias e de informações que compõem
o universo, a Terra e cada um dos seres, também os humanos. Há uma energia de
fundo inesgotável e misteriosa que opera no universo e que alimenta todas as
emergências e que está sempre ai, que não pode ser manipulada mas que pode ser
invocada por nós e que nos permite visões novas e saltos quânticos rumo a
formas mas altas de complexidade e de ordens mais significativas. Para mim
hoje, a ecologia é tão decisiva que dela depende se tenhamos ainda futuro ou se
vamos ao encontro do caminho já percorrido pelos dinossauros
Que tipos de cuidado o homem está deixando de
ter?
R/ Há uma carência generalizada de
cuidado no mundo de hoje. Se partimos da concepção filosófica que não cabe aqui
detalhar de que o cuidado é parte essencial do ser humano e mesmo da
estruturação do universo (a calibragem sutil de todas as energias e elementos
primordiais que permitiram que o mundo chegasse ao que hoje é), então estamos
sofrendo um estado altamente desumanizado de relações em qualquer campo para
onde dirigirmos nosso olhar. Mas mais que tudo não temos cuidado para com a
vida em todas as suas formas. Na verdade, não amamos mais a vida,
pois a submetemos a tantos riscos, a manipulamos em função da acumulação e dos
negócios nos mercados e ofendemos tão duramente sua dignidade intrínseca que
nos tornamos, de verdade, cruéis e sem piedade. Até temo, que Gaia,
a Terra entendida como um super-organismo vivo, se defenda de nós,
eliminando-nos como eliminados uma célula cancerígena. Pois é isso que nos
tornamos em relação a todas as demais espécies. Estamos em guerra declarada
contra Gaia, atacando-a em todas as suas frentes. E não temos condições de
ganhar esta guerra. Gaia poderá existir sem nós como existiu durante quase todo
o tempo de sua existência que é de 4,5 bilhões de anos.
Com quais olhos você vê o futuro da
humanidade? Com pessimismo ou otimismo?
R/ Sinto-me perplexo face às
contradições da realidade, especialmente agora que estamos no coração de uma
crise que atingiu os fundamentos do sistema e da cultura do capital. Gastamos
3-4 trilhões de dólares para salvar o sistema financeiro, especialmente, os
bancos que durante anos nos enganaram prometendo-nos ganhos que se mostraram
agora ilusórios e falsos. E gasta-se apenas alguns milhões, no máximo 2-3
bilhões para enfrentar o aquecimento global e salvar o planeta. Continuamos sob
o domínio da irracionalidade e da insanidade que nos levarão a situações de grande
sofrimento e de pena para todo o sistema da vida especialmente para os pobres.
Concordo com Hegel que escreveu: da história aprendemos que não aprendemos nada
da história, mas que aprendemos tudo do sofrimento. Iremos ao encontro de
grandes padecimentos. Quando a água chegar ao nosso nariz, saltaremos como
loucos para nos salvar. E nos salvaremos, mesmo pagando alto preço pela nossa
falta de cuidado. Mas prefiro crer em Santo Agostinho que dizia: aprendemos sim
do sofrimento, mas muito mais do amor. Pois esse nos transforma e nos faz
inventar mil meios para estar junto da pessoa amada. Então acho que devemos
amar o mais que pudermos a Mãe Terra, cada ser, para sofrer menos e criar mais
condições de futuro para todos.